sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

LUCIANA

Deitaram-se na cama e Luciana lhe ofereceu os lábios ávidos.  Vestido curto, leve, solto, quase transparente,  preto com estampa de pontos brancos.  Guilherme ergueu o corpo da mulher e a sentou no colo, como fora ela um achado raro e precioso, um diamante, uma esmeralda, o bem maior do mundo inteiro.
Sabia que a moça era de se dar com facilidade, que tinha vários amantes e que jamais lhe entregaria a alma tão liberta e aventureira.  Sabia também que a não queria para si, pra todo o sempre ou alguns anos. Mas naquele momento a amava como o mais extremoso enamorado, como o mais possessivo dos machos existentes.  Porque a desejava... como a desejava! Ah, como a desejava!  Queria tanto desfrutar aquele corpo esguio e pálido, as pernas magras e roliças que há  tanto cobiçava, sentia tanto prazer em tê-la na cama, que o ardor parecia amor, entrega, sentimento fundo, suplicante e desvanecido.
No dia seguinte talvez Luciana fosse de outro, mas isto não importava ao homem, que era tão ávido e sôfrego,  que achava que o tempo não passaria, que aquele momento se eternizaria; que não tinha ciúmes, mas só desejo: um desejo de longo tempo, um desejo que não tinha medidas, um fogo que lhe abrasava o corpo inteirinho.
Levantou-lhe o vestido, deitou-a na cama, arrebatou-lhe a calcinha de renda e por pouco não lhe rasgou o escuro vestido.  Beijou-lhe a boca longamente inúmeras vezes,  sugou-lhe os seios, a língua, os lábios, a vulva e as nádegas, cheirou a mulher por inteiro: cada  milímetro do corpo e cada cavidade, e toda cavidade do corpo de fêmea, candente, adentrou.
Amanhã quem sabe outro a ela faria tudo o que ele agora fazia, mas pouco a Guilherme importava: hoje a mulher era dele; dele somente, e era na essência a mais pura magia: ninfa, deusa, valquíria, sereia, feminino demônio ou outra entidade, mas algo que em definitivo ao homem enlouquecia.
O  casal gemia, arfava, gozava, fremia, e tê-la consigo num ballet tão frenético,  entre frases tão quentes, obscenas palavras, lascivas carícias, era para Guilherme a conquista maior, a chegada ao paraíso, e este sequer se lembrava de algo que houvesse além do desejo, delírio, deleite, prazer inefável, esquecido mundo, da vida, do ontem, do dia vindouro, que havia amanhã.

Barão da Mata

sábado, 12 de outubro de 2013

SE HOUVER INSÔNIA

Se eu acordar bem antes d'hora desejada
E achar que a vida inteira foi em vão...
Se ainda às quatro me invadir uma agonia
Que aperte o peito como o fosse esmigalhar...
Se o alvorecer mais parecer noite profunda,
Mas profunda de eu sentir um medo singular...
Se o arrependimento me bater como tabefes
E o desejo que me venha seja a morte, a morte unicamente...
Buscarei sofregamente uma mentira motivante,
Um devaneio inda perdido em minha infância?.
Quem sabe eu me darei a alguma luta sem sentido
Ou me atire como um louco se batendo contra Roma?
Empunharei as bandeiras mais chinfrins, irrelevantes?
Jogarei meus sonhos numa fêmea descabida?
Aguardarei com ânsia meu suspiro derradeiro,
Num querer tão sem medidas, que o meu medo se suprima
E  me alegre este momento como amor correspondido?

Barão da Mata

SE VIER A ESCURIDÃO

Se os meus dias forem puras sombras e agonias,
Se a tristeza me doer como ferida latejante...
Se os caminhos se estreitarem, não puder eu percorrê-los,
Se as barreiras se fizerem impossíveis de transpor...
Se o inferno em minha mente não deixar lugar à paz...

Inda assim não me porei de joelhos ante altares,
Não porei no rosto tenso um postiço ar de alegria
Nem aos céus irei rogar as ajudas que se pedem.
Não verei nas cartas, búzios o caminho a se adotar
Nem cairei em louvações a um pai sisudo e mudo...

Mas terei nos próprios braços toda a força que procure,
Buscarei na minha mente os milagres que persiga
Com meus pés pisando  o chão, sem querer uma ilusão.

Barão da Mata

O BÊBADO

Desceu do táxi às oito da manhã. Vinha bêbado da noitada, a gravata e o paletó dependurado num dos braços. Entrou no prédio com os passos trôpegos, pegou o elevador e chegou ao apartamento.Dentro da sala, jogou-se ao sofá, e o revólver que portava caiu da cintura. Tirou-o do sofá e colocou-o sobre a mesa de canto.
A cabeça rodava, os pensamentos mais velozmente ainda.
Lá fora crianças brincavam. Era uma manhã serena e morna de primavera. Babás e mães empurravam seus carrinhos com bebês, colhendo para eles o sol da manhã dourada. Os carros passavam sem estardalhaços pela rua de pouco movimento e pouca atratividade pelos seus quebra-molas. Algumas raras buzinas se ouviam, o trânsito na rua transversal era intenso.
Ficou a matutar sobre a vida e o porre que tomara. De que valia a esbórnia e um porre? Besteira! De que valia a vida? De que valia tudo?
Mulheres decotadas passavam pela rua, os olhos ávidos do porteiro do prédio as acompanhavam. Moças de saia curta cutucavam-lhe os desejos.
O bêbado tentou levantar-se em vão, caiu sentado no sofá. Já nem se lembrava do momento em que pagara o táxi. Mas quase com certeza o pagara, pois do contrário teria havido uma confusão dos diabos na entrada do prédio. Levou uma das mãos ao rosto e teve vontade de chorar: uma lágrima desceu-lhe do rosto suado.
Um carro deslizou suavemente pela rua de pouco movimento. Uma babá tirou a criança do carrinho e a pôs no colo. Um menino andava vagarosamente em sua bicicleta, sobre a calçada de colorido piso. Um passarinho pousou num ninho defronte a uma janela, sobre o galho de uma árvore frondosa. Um casal de idosos passeava de mãos dadas, uma mulher bonita e de vestido com transparências arrastava atrás de si os olhos do porteiro. Outro menino passou calmamente em sua bicicleta. Um outro passarinho procurou o ninho. O estampido do tiro mortal encheu a manhã serena, subitamente convertida em manhã de pânico e estupefação.

Barão da Mata

DIJA

Entraram no quarto de motel, ela foi logo se despindo, deixando à mostra os seios túmidos de auréolas marrons, as nádegas salientes e provocantes, as coxas morenas e lisas, a vulva carnuda de pelos rentes.
--Você é rápida. – ele observou quase numa queixa.
--Sou profissional, -- a mulher respondeu secamente e de pronto – não sou sua amante.O homem sentou-se na cama e ajeitou os cabelos grisalhos caídos ao rosto, ironizou-a:
--Esse teu jeitinho “doce e sensual” dá na gente tesão de ir embora, de rezar, de ler,menos de foder.
--Isso é desculpa tua, porque tu é velho e tá bêbado, e sabe que vai broxar.
Ele riu-se de leve, deu-lhe a mão e ambos foram para o banho.Buliram-se no chuveiro, a morena colocou-lhe o preservativo e os dois transaram ali mesmo.
--Viu como eu não tô tão bêbado? – ele dizia com algum gracejo.
--Vi que você não é tão broxa. – ela redargüia também gracejando.
Os dois se deitaram abraçados, ele colocou a cabeça da moça em seu peito, indagou enquanto acendia um cigarro:--O que levou você a parar nessa vida?
Ela apoquentou-se, erguendo a cabeça:
--Vai dar uma de babaca e ficar me dando conselho?
Ele fez um gesto de indiferença:
--Nada! Cada um faz da sua vida o que quer. Só perguntei por curiosidade.
--Qual é o seu nome? – ela quis saber.
--Raul. E o seu?--Me chama de Dija.
--Dija? Qual é a origem desse nome?
Ela sorriu:
--É meu nome abreviado...
--E qual é o teu nome inteiro?--Dejanira... Maria Dejanira... Mas eu prefiro que as pessoas me chamem de Dija porque é mais bonito.
--Eu também acho.
--Mas eu já tô adotando outro nome... um internacional! Muito mais bonito!
--Ah, é?--Eu agora, quando faço “strip-tease”, já uso esse nome artístico. Adotei esse nome porque, há mais ou menos um mês, um gringo que me comeu ficava, enquanto fodia, o tempo todo doidinho e me dizendo no ouvido: “wonderful bitch... wonderful bitch!”
Raul ria achando muita graça:
--Porra, deixa de ser burra! “Bitch” é cadela, cachorra, nome que no inglês designa prostituta, vagabunda, puta... Ele te chamou de puta maravilhosa, cadela magnífica, só porque tava gostando da foda, ora!
A mulher se viu decepcionada com o gringo e o codinome:
--Que filho da puta!
Ele a consolava:
--Não tem problema: adota só o “wonderful” e tá tudo bem. Você tira “cadela” e fica só “magnífica”, tá?
--É verdade. Até que ficou bom: Wonderful, -- empostava a voz para experimentar -- a grande Wonderful!
Raul franziu a testa com certa estranheza:
--Você gosta da profissão que tem?
--É o que melhor eu sei fazer.
--Mas me responde: você gosta do que faz?
Ela tinha um olhar distante:
--No começo, eu ficava com medo, sentia nojo, mas depois perdi o medo e o nojo. Hoje eu gosto de ser puta.
--Verdade?
--Eu sou um sucesso. A maioria dos homens me procura, eles ficam maluquinhos de tesão comigo. Eles me aplaudem quando eu faço “strip-tease”, os gringos vibram comigo... e eu me sinto gratificada... E eu nasci muito pobre... e as pessoas nunca ligaram muito pra mim antes de eu ser puta.
Agora o olhar dela estava impregnado de tristeza:
--A minha mãe também foi da vida. Fazia ponto num mafuá que ficava na Praia de Ramos: o “Bambu”, você já ouviu falar? O Bambu de Ramos...
--Não, nunca ouvi falar...
--Só conheceu o Bambu quem mora no subúrbio. Eu mesma morei mas não conheci, acho que era muito pequena quando acabou, não me lembro. Contavam que a minha mãe era muito bonita, os homens só queriam saber de foder com ela: era Maria da Conceição, a “Rainha do Bambu”.
--Ela já morreu?
--Morreu. Em 1986. De câncer...
--Ela ainda tava na vida?--Nada! Ela já não era mais bonita
"Eu nasci em 73. Não sei quem foi meu pai; minha mãe emprenhou na vida. Ela foi prostituta, mas eu acho que não queria que eu fosse. Mas ela não se sentia com moral – sabe? --, coitada(!), pra me dizer que não queria que eu fosse puta.”
“Quando o Bambu acabou, ela passou a me deixar na casa de vizinhas pra ela poder ir prá Tiradentes. Ela era do Sergipe e a gente não tinha nenhum parente no Rio, eu tinha que dormir nas casas das vizinhas."
“Aí minha mãe foi ficando velha, feia, e acabou vendendo bala nos ônibus. Quando eu tinha oito anos, ela ainda era da vida, mas não queria que eu soubesse. Ou melhor: ela sabia que eu sabia, mas fingia que não sabia, entende?”
“Quando eu tinha treze anos, ela morreu, e eu não sabia o que fazer da minha vida. Fui empregada doméstica, mas o marido da minha patroa me comeu à força, fui jogada na rua, dormi muito na rua, fui comida à força outras vezes, outras vezes dei pra ter o que comer, outras vezes dei por prazer. Aí fui parar na Tiradentes. Alguns caras se interessavam por mim: um me levou prá Mimosa. Outro, me levou pr’uma termas de Campinho e, de lá pra cá, de termas em termas, boate em boate, inferninho em inferninho, eu tô aí, fazendo sucesso, em Ipanema, Copacabana, Leblon... ‘rainha’ dos puteiros!”
Raul a encarou longamente, quis dizer alguma coisa, mas calou por medo de parecer paternal. Brincou, então:
--Você me achou com cara de psicanalista?
--Desculpa, amorzinho... Te enchi muito?
--Não...—ele sorriu com doçura.
--E você?! Agora é tua vez! Conta o que é que tu faz na vida!
--Eu sou engenheiro, tenho uma firma de engenharia em Botafogo.
--Qual a tua idade?
--Cinqüenta e cinco.
--É casado?
--Sou.
--E o que é que você foi fazer num puteiro?
Raul tomou as mãos dela nas suas e falou de maneira pausada, olhos nos olhos da moça:
--Me responde uma coisa, gostosinha: e o que faz alguém dentro de um casamento?Ou dentro dos padrões preestabelecidos pelas suas relações sociais e profissionais? Você sabia que já me relacionei comercialmente com muito empresário safado, administrador público desonesto, político escroto, além do que não confio na minha mulher e há muita gente suja com quem lido por obrigação social. Então eu te pergunto: em que a sociedade é mais elevada que um bordel?
--Não sei. -- ela não o entendia bem. Depois queria saber:--Você frequenta sempre os puteiros?
--Não, não frequento, não vou nunca. Mas hoje eu mandei tudo à merda, tudo se foder, e tô aqui, de porre, na cama, com você. – e repetia: -- Que tudo se foda! Que tudo vá prá merda! Não creio mais em nada, tô cansado de tudo... Tô com o saco cheio de tudo! Que tudo vá prá merda!
Em seguida os dois se entreolharam, ficaram assim por alguns momentos e depois riram um para outro.
--A gente veio aqui pra foder ou pra conversar?—ele perguntou numa galhofa.
Dija deu uma gargalhada franca, saborosa, e os parceiros se agarraram avidamente. Quando amanheceu, banharam-se e ela se vestiu rapidamente.
--Quer uma carona até a sua casa? – Raul perguntou.
--Não precisa, eu moro aqui por perto, num apartamento com umas colegas.
Ele calçava os sapatos, ela avisou:
--Vou embora antes de você. Você se incomoda?
--Não. – o homem não se importava.
Dija abriu a porta que dava acesso ao corredor , ia saindo quando ele a chamou:--Dija?...
Ela parou à porta do quarto, ele se levantou e caminhou até diante da moça:
--Seja feliz. –despediu-se beijando-lhe a testa, numa ternura comovida.
Ela sorriu com a mesmo afeto, desvanecida, os olhos umedecidos; beijou o rosto dele e se foi, meiga, suave... afável e frágil menina.

Barão da Mata



JOSENILDO, O INFELIZ NO AMOR

Josenildo jamais fora, ao menos por muito tempo, feliz no amor, e era, talvez por isto mesmo, um eterno apaixonado, louco por viver um romance de plena entrega, vulcânicos desejos, irremediável apego, idolatrias medievais, juras trovadorescas. Vivia a buscar uma cara-metade na acepção mais romântica da expressão, nunca fora, ou ao menos achava que nunca fora, amado pela maioria das mulheres que tivera.
A primeira namorada o traiu com o irmão dele, e isto fez que Josenildo adquirisse especial interesse por boleros. A segunda namorada disse não quando pedida em casamento. A terceira recusou-se a ir para a cama com o pobre, a quarta foi, mas rompeu o namoro no mesmo dia, fazendo-o tornar-se fã do Wando, e assim o desamado foi levando sua triste vida.
Entre tantas decepções, houve uma namorada com quem dormiu inúmeras vezes, com quem noivou, montou o enxoval e que não compareceu no dia do casamento. Aí, o sujeitinho descolou em algum sebo de discos um vinil com “O Ébrio”, de Vicente Celestino. Houve uma com quem chegou a se casar, mas foi obrigado a pedir o divórcio, pois, num dia em que voltara para casa mais cedo do trabalho, encontrou o vizinho em sua cama, a comprazer-se dos carinhos e volúpias de sua mulher, e, o que é pior, ainda a usar-lhe a cueca, que estava enrolada em uma das pernas. Foi um dia dramático: Josenildo gritou, possesso, ainda da porta do quarto:
-Vagabunda! Desgraçado!
Nada conseguiu dizer o vizinho senão:
-Deixa só a gente acabar esta transa, que eu vou embora.
E ela:
-Não se preocupe. Se você ficar quietinho, eu concordo com a separação amigável.
Num dia de relativa sorte (e vocês logo vão entender por que relativa), nosso coitado apaixonado acabou na casa de uma mulher casada que mal conhecia. Ela lhe fez juras de amor, os dois se acarinharam licenciosamente, e ele tinha as calças à altura dos joelhos quando ambos ouviram um barulho e ela disse:
-Meu marido!
Josenildo levou a mão à boca, estarrecido, a mulher jogou-lhe a camisa e murmurou, apavorada:
-Pula a janela, que dá tempo!
Ele levantou rapidamente as calças, foi fechá-la... mas prendeu o zíper no prepúcio! Fez um escândalo daqueles(!), não correu e levou cinco tiros na bunda.
Uma mulher apaixonou-se por ele verdadeiramente. O relacionamento evoluiu de forma meteórica. Foi uma perdição de amor, e os dois se casaram em dois meses. Jamais Josenildo fora tão feliz. Era aquele fogo queimando os dois constantemente, aquela entrega total e absoluta, aquele amor perfeito, aquela emoção a todo instante. Todos os dias o marido chegava em casa com flores e, num belo fim de tarde, introduziu a chave na fechadura, chamou pelo nome da moça e não ouviu resposta: entrou. Encontrou-a deitada no sofá, morta. A pobrezinha era cardíaca e seu coraçãozinho não aguentou tanta emoção a todo momento.
Desolado, o nosso mal-afortunado amante ficou um longo tempo em total solidão, até que, numa tarde de sol, conheceu Mariana, linda e gostosa morena, que fez do peito dele uma profusão de vendavais.
-Você me ama? – ele sempre queria certificar-se.
-Amo. Preciso de você como do ar que respiro.
Submeteu-a a todas as provas de amor e fidelidade, em nenhuma a morena tirou nota baixa.
-Você não está doente? Não tem Aids, coração fraco, nenhuma doença grave?
-Não! Estou perfeitinha para você!
Fê-la realizar uma série de exames, um check-up acuradíssimo: eletrocardiograma, ecocardiograma, teste de esforço, anti-HIV, sorologia, colesterol, glicose, triglicerídeos e uma pá de outros exames. Resolveu ele próprio fazer uma completa averiguação clínica. Tudo estava bem com ambos.
-Você quer casar comigo? – perguntou à namorada.
-É o que eu mais quero.
Josenildo era a cada dia mais inseguro:
-Você jura que não vai me trair?
-Juro que não.
-Jura que vai ter prudência quando dirigir?
-Juro.
-E quando atravessar também?
-Claro que juro!
Fez que ela aprendesse jiu-jitsu e a atirar. Presenteou-a com uma arma para autodefesa. Cercou-a de proteções.
-Você não vai me abandonar?
-Já te disse que não!
- Você já não é casada?
- Claro que não, seu tolinho...!
Marcaram o casamento.
A cerimônia matrimonial foi memorável. Os convidados lotaram a igreja.Fizeram a festa num clube, encheram-no de gente. Josenildo era o homem mais feliz do mundo, e achou que só com um bom porre proporcionaria uma comemoração à altura do acontecimento. Bebeu todas e mal conseguia andar.
No fim da festa, onde ficou até a saída dos últimos convidados, despediu-se dos padrinhos pela terceira vez enquanto Mariana e o motorista esperavam dentro do carro.
-Eu sou o homem mais feliz do mundo.– disse num último aperto de mão.
E encaminhou-se para o carro, eufórico, cambaleante, ergueu os braços e gritou:
-Eu sou o homem mais feliz do mundo!
Desequilibrou-se, caiu para trás, batendo fortemente a nuca no meio-fio da calçada.
Nunca se viu uma viúva tão inconsolável como Mariana.

Barão da Mata

JONAS, O SALAFRÁRIO

Jonas já nasceu salafrário. Ainda no berçário, sempre desandava a chorar. Não porque tivesse febre,fome ou dor de barriga. Fazia-o apenas para que a enfermeira, que usava uniforme decotado e dispensava sutiã, se debruçasse diante dele e o chorãozinho pudesse ver-lhe os seios. Aos dois anos, na creche, vendia leite falsificado, feito com água e farinha de trigo, às outras crianças, recebendo o pagamento em balas ou doces. Colocava maracujina no suco de laranja das coleguinhas e aproveitava-se do sono das mesmas para ficar a boliná-las.
Quando entrou para a escola, procurou sentar-se na primeira fila, bem diante da mesa da professora. Não que fosse aluno aplicado , interessado nas aulas, mas porque ela se descuidava vez por outra ao sentar-se , abrindo as pernas sob a mesa, o que permitia que ele lhe visse as calcinhas.
Na adolescência, já a sua primeira namorada foi conquistada de um modo não lá muito ético. É que o nosso protagonista tinha um colega de classe um tanto quanto tímido, que interessou-se por uma menina de uma outra turma, que correspondia aos seus sentimentos; entretanto, como o rapazinho não se encorajava em declarar-se direta e pessoalmente, resolveu um dia mandar recado pelo amigo:- Diz a ela que eu tô apaixonado . Se ela gostaria de ir ao cinema comigo...
O nosso protagonista, todavia, como também se sentira atraído pela mesma menina, tornou a mensagem extremamente diversa da enviada:
- O fulano pediu a você que o desculpasse, mas que não alimentasse qualquer esperança com relação a conquistá-lo, porque é homossexual e não está nem aí pra meninas.
Ante a perplexidade da mocinha, continuou:
- E disse mais, só que pra mim em confidência: que você é uma bobalhona que se apaixonou tanto por ele, que é incapaz de namorar qualquer outro rapaz deste colégio. O que é uma pena, já que eu tô tão interessado em você e...
- Você topa me namorar?! – atalhou a colegial, magoada, furiosa e resoluta.
O colega de classe ficou sem entender nada, porque a moça passou a virar-lhe o rosto a partir de então, além de namorar o seu desleal mensageiro.
-A gente não entende as garotas. – explicou-lhe este uma vez – Quando eu fui dar o recado, ela me disse que não tinha o menor interesse em você e que eu, sim, era o homem dos seus sonhos.
Não chegou, ao completar dezoito anos, a ingressar nas forças armadas, graças a um atestado médico de insuficiência física, atestado este com timbre de um hospital público que obtivera de um falsário. Liberado de suas obrigações em relação à pátria, resolveu, no entanto, mesmo depois de vinte e tantos anos, não ingressar no mercado de trabalho.
--Querem vocês -- dizia a seus críticos – que eu engrosse essa camada de trabalhadores explorados que padecem neste país? Abster-me de trabalhar é antes de tudo um protesto contra a perversa relação de trabalho que grassa nesta nação.
Houve uma época em que deu a impressão de querer dedicar-se à caridade, e não é que alugou um terreno, armou um "stand" e montou uma igreja, a Igreja do Jesus Miraculoso, onde fazia enxergar os cegos, ouvir os surdos, falar os mudos, numa sucessão de milagres jamais vista? É bem verdade que cobrava donativos pesados, mas explicava a suas ovelhas que a igreja era de Deus e Deus não era mendigo para receber parcas esmolas, além de pô-los a par de que precisava dar continuidade à sua ( a dele, Jonas) obra incomensurável e magnífica: a construção, para os seus seguidores, de um condomínio de moradias no Céu.
Essa história toda de condomínio celeste, milagres, caridade só deu em água por culpa de uma mulher mal-amada, disposta a jogar por terra toda a vastidão do trabalho do nosso pastor. É que um dia, mal Jonas acabara de fazer enxergar um cego que o era há já dez anos, a mulherzinha gritou do meio da multidão:
--É mentira! Esse homem nunca foi cego!
O pastor indignou-se e dirigiu-se a ela com a autoridade moral natural e peculiar dos homens do Senhor:
--A senhora duvida de um milagre de Deus?
--Deixa de palhaçada, seu safado! Ele é meu marido e fugiu ontem com a vizinha. Pelo menos até ontem tava enxergando muito bem!
Foi um corre-corre danado, o falso cego levando guardachuvadas da mulher, gorda e mal-vestida, Jonas fugindo à ira da multidão, as pedras atingindo-lhe os calcanhares, e o episódio mostrando-nos mais uma ironia da vida, onde se pode descer da magnitude à execração, do mais elevado pedestal à colocação mais chã. Assim o nosso amigo sofreu a primeira grande queda de sua vida.
Mas tinha capacidade para reerguer-se! E o conseguiu através de um casamento bastante ... digamos... satisfatório. A mulher era um pouco mais velha, se levarmos em conta que ele contava uns trinta anos e ela, setenta e cinco. Uma viúva doente e que herdara alguns bens do marido...
--Vejam só, meus amigos – costumava comentar entre os companheiros de copo, no período de recém-casado – duas bênçãos vieram a mim ao mesmíssimo tempo: o amor e a boa-sorte.E, num gesto de auto-exaltação:--É a recompensa pela bondade, meus irmãos! Eu me dei à caridade, à probidade e à honradez. Deus me deu uma bela e remediada mulher por minhas obras e minha conduta neste mundo.
A conduta de Jonas dispensava comentários, a expressão remediada se adequava perfeitamente à situação financeira da mulher; todavia, bonita era uma palavra jocosa para se fazer alusão à mencionada senhora. Ela tava  "no bagaço", tinha setenta e cinco anos e aparência de oitenta e cinco. Tanto que o recente esposo tinha dificuldades em cumprir suas obrigações conjugais, sendo em muitas das noites auxiliado (ou melhor, salvo) pelos soníferos que vivia a colocar nos sucos de tomate que a pobre mulher tinha o hábito de tomar após o jantar.
Enfim, a senhora morreu no tempo mais ou menos previsto por Jonas, mas este não viu sequer a cor de sua herança, pois os credores da finada deixaram-na pobre como um indigente poucos dias antes de sua morte, com uma movimentação frenética de oficiais de Justiça pela casa e as contas bancárias penhoradas.
Foi aí, então, que o nosso homem teve a sua segunda queda na vida .
Nosso amigo houve assim de enfrentar a dura luta pela sobrevivência. Teve de se valer de pequenos expedientes como vender pardais pintados de amarelo para passarem por canários e fazer outros pequenos "bicos", tudo pelo suado pão dos dias.Outros biscates, aliás, de vez em quando lhe rendiam ganhos bastante razoáveis, sobretudo com o golpe da mulher adúltera.
Este golpe era, aliás, bastante simples: Jonas associou-se a uma morena dotada de inúmeras e inquestionáveis virtudes – bunda grande, peito em pé, coxas grossas e torneadas, olhar lascivo e lábios carnudos – que, quer num ponto de ônibus, "shopping" ou que lugar fosse, olhava insinuante e insistentemente para o sujeito que lhe parecesse ter a carteira recheada. A vítima se aproximava, os dois conversavam e trocavam lisonjas, Celina, a morena, convidava-o a ir à sua casa, este ia, os dois se despiam no quarto, ela fazendo que antes o indivíduo deixasse as roupas sobre uma cômoda que ficava bem próximo à porta do quarto. A cama ficava bem longe da cômoda e encostada à janela, e, quando os dois iam iniciar o ato sexual, Jonas, que sempre passava todo o tempo escondido na sala, gritava:
--Sua vagabunda! Desta vez eu mato você e o teu amante! –e metia a mão na maçaneta, abrindo a porta e surgindo diante do coitado com um revólver sem bala em punho.
Jamais um dos pegos no truque quis ir até a cômoda para pegar as roupas e a carteira, todos pulavam a janela nus como estavam. Os dois cúmplices riam muito nessas ocasiões, dividiam o dinheiro e Jonas é que se regalava nas carnes bronzeadas da gostosona.
Esta sociedade só se desfez porque o nosso amigo sofreu o seu terceiro golpe. Houve um dia em que Celina gostou de verdade de um sujeito, um cara grandalhão e musculoso como um hércules. Quando o tal estava nu e Jonas começou a bradar, a morena segurou o parceiro pelo braço, impedindo-o de pular:
--Não pula não, meu bem, que o revólver é de brinquedo.
Jonas arregalou os olhos, quedado, viu de repente aquele gigante nu crescer diante dele, e apanhou copiosamente... numa surra memorável, inesquecível.
Sumiu durante umas três semanas. Quando reapareceu, entrou no bar lotado de conhecidos, o ar compenetrado, e não sorriu nem aceitou as bebidas que lhe foram oferecidas.
--Senhores! – bradou solenemente – Quero pedir-lhes o silêncio por um momento, apenas para dizer-lhes que estou de partida.
Quiseram dizer alguma coisa, mas ele os conteve com um gesto, seguiu:
--Um homem deve ir sempre ao encontro de seus iguais e seus pendores, um homem deve ir sempre ao encontro de seu destino. Adeus, senhores! – e saiu botequim afora, sem atender a qualquer voz que o chamasse, sem dar qualquer explicação.
Sumiu do bairro, nunca mais ninguém o viu nem soube dele. E vez por outra ficavam a conjeturar sobre que rumo tomara na vida, o que quisera dizer com suas poucas e formais palavras. A que iguais se referira? A ladrões, vigaristas, golpistas, assaltantes? Não, assaltantes não: Jonas nunca fora violento. Nem os tais iguais deveriam ser desonestos, mas tão somente tristes, já que ele tinha o ar tão sério e compungido... E o que quisera dizer quando falou em ir ao encontro de seus pendores? Vigarice, calhordice, desonestidade...? Não, pois e o semblante tão austero...? Além disto, aquela merecida surra provavelmente o havia regenerado. Ele falava de algum pendor sério, talvez para a tristeza – não é o que sugeria em sua expressão? Reunir-se-ia a outras pessoas tristes, uma associação dessas de anônimos que há por aí. Ou quem sabe tornar-se-ia monge, viveria num mosteiro em lugar ermo e distante...? Não, meu Deus! Estaria ele pensando em suicídio, juntar-se a outras almas igualmente tristonhas? Meu Deus! Que tragédia! Foi isto que quis dizer ao referir-se a ir ao encontro do próprio destino. Só podia ser: ir em busca de seus iguais era ligar-se no plano sobrenatural a outras almas infortunadas, o infortúnio era o seu pendor, e a morte, o meio de chegar a tal destino. Os boatos rolavam com freqüência.. Jonas se matara. Jonas fora para um mosteiro. Jonas tornara-se um eremita. Integrara-se a uma quadrilha de falsários. De vigaristas. De assaltantes. Jonas casara-se com uma milionária, morava no estrangeiro.
E assim os rumores foram indo e vindo, de boca em boca, até que um dia uma barulhenta e perturbadora carreata parou bem em frente ao boteco que outrora Jonas freqüentava, e adivinhem quem estava de pé no carro principal, com uma faixa enorme acima da cabeça! Adivinhem quem! Quem? O próprio, minha gente! E na faixa se lia: “Votar em Jonas Pereira é votar em trabalho e honestidade.”Jonas desceu do carro e abraçou os amigos, pediu votos e pagou bebidas, sorriu muito e comentou com entusiasmo:
--Um homem com os meus dotes é nascido e feito sob medida para a carreira política.
E o nosso homem não só teve os votos dos amigos, como também elegeu-se na condição de um dos políticos mais votados daquelas eleições.
fim

Barão da Mata